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terça-feira, 20 de junho de 2017

A cegueira conveniente e o genocídio persistente no Brasil

Nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos
O preconceito e o desprezo ainda são iguais
Nós somos negros também temos nossos ideais”
(Letra:Racistas Otários – Disco: Holocausto Urbano – Racionais Mc’s – 1990)

Em dezembro de 2014 eu fiz um texto chamado a “A morte que não comove”, onde eu comparava as mobilizações que ocorriam nos Estados Unidos por conta da morte do jovem negro Michael Brown, 18 anos, na pequena cidade de Ferguson, com cerca de 21 mil habitantes, no Estado de Missouri, e que mobilizou outras 170 cidades de 37 estados e com uma grande repercussão internacional, enquanto no Brasil o mapa da violência apontava para nós como o país que mais mata no mundo, em números absolutos, tendo 56 mil pessoas assassinadas no ano de 2012, e isso não era capaz de mobilizar e comover a sociedade brasileira.
Neste ano, o Atlas da Violência aponta que em 2015 foram 59 mil assassinatos. Ou seja, os números permanecem crescendo e as vítimas continuam as mesmas: jovens entre 15 e 29 anos, negros e moradores das periferias. Na semana que esses dados foram apresentados, a principal pauta na grande mídia foi o que ocorria no julgamento da chapa Dilma/Temer no TSE, que teve um desfecho revelador do quanto a Justiça brasileira está muito longe de ser isenta, imparcial e o quanto ela se adapta aos interesses de quem está no poder.
Mas voltando ao que realmente deveria ser a grande notícia em nosso país, que vivemos uma guerra civil não declarada, que tem um recorte de classe e étnico, imbricado, muito bem definido. Que tem como maior responsável direto ou indireto o Estado. A responsabilidade direta podemos associar às ações dos órgãos repressores que agem de forma violenta nos territórios periféricos para manter o controle e combater o inimigo, tendo como principal pano de fundo o combate ao tráfico de drogas ilícitas, ou mais conhecido como a guerra às drogas. Outra forma em que as polícias atuam de forma contundente e violenta é na defesa do patrimônio privado .
Outra forma de responsabilidade do Estado pelo aumento da violência que podemos chamar de indireta, pois não é necessariamente um agente do estado que puxa o gatilho, são as profundas desigualdades sociais que concentram a riqueza nas mãos de muito poucos em detrimento da maioria. Esse modelo tem raízes históricas no escravismo e se arrastam até hoje. O aumento do desemprego, a ausência de oportunidades, a precarização da saúde, da educação, geram um aumento da miséria e consequentemente são fatores estruturais que contribuem com o aumento da violência.
Esse debate não é uma novidade no Brasil. Em 1978, um dos estopim das mobilizações que laçaram o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), nas escadarias do Teatro Municipal, foi a morte de Robson Silveira da Luz em uma delegacia em Guaianazes, zona leste de São Paulo. Na década de 90, período de aprofundamento do neoliberalismo, aumento do desemprego, aumentos dos chamados cinturões de miséria, produziram um aumento da violência nos territórios periféricos, praticados pela polícia e muito bem relatado pelo movimento Hip Hop e sua música Rap.
Recentemente, durante uma entrevista de lançamento da Exposição sobre os 30 anos de carreira dos Racionais Mc’s, eles foram indagados pelo Jornalista André Caramante se o disco “Sobrevivendo no Inferno”, de 1997, foi a primeira vez que o grupo dialogou com outras classes sociais além das periferias, e o Mano Brown foi certeiro ao dizer que “o Brasil tem épocas de cegueira, se alto aliena, de tempos em tempos fica cego, surto e mudo, nessa fase [anos 90], tava cego surdo e mudo, tinha coisa muito óbvia que ninguém via, mais a periferia via, vivia, mais também não via, tava dentro do jogo mais não sabia que envolvia elas”.
Dando sequencia, Brown resgata Malcon X e fala o quanto a sua autobiografia foi uma inspiração para as composições dos Racionais. “Esse livro mudou a minha vida e nossos raps vieram baseado naquela analogia dele, aquela forma de ver a vida, o porque das coisas”, disse, e disparou novamente retratando a cegueira da sociedade diante das desigualdades e do racismo. “Então, a cegueira, eles não veem porque estavam cegos, tava na cara deles, eles não encontravam com o moleques no farol? Eles já não tinha visto assalto? Não tinha visto favelas se multiplicando na cidade? Eles não acompanham noticiário? Ele não vê o cara trabalhando na casa dele, trabalhando para ele, tirando a sujeira para ele, ele não vê? Tá cego? Como você ignora uma pessoa que está na sala da sua casa cheia de problemas, triste, de cabeça baixa, você não percebe? E se fosse com eles? Então, o cara não é um móvel, é um ser humano , um monte de gente triste por aí, você não tá vendo? Uma pá de gente triste, uma pá de bar lotado, criança em baixo de ponte, rebelião, gente morrendo pra caralho. Você está aonde, parceiro? Na França? Ai quando os Racionais vem falando o óbvio, a sociedade diz: ‘Nossa os caras é foda’. Foda o que!?”.
Indo mais a fundo na questão, Mano Brown escancara: “Eu sou semianalfabeto parceiro, eu falei o óbvio, puta país racista do caralho, só patifaria, falamos o óbvio, porque eles não veem? ‘Os caras [Racionais] é gênio’. Gênio o que, malandro?! Eu saí do primeiro colegial porque eu não aprendia, simplesmente porque foi me cansando , me injuriando, peguei raiva, dos alunos, do professor, da escola, eu não aprendia, porque eu não comia bem, nunca fui porra nenhuma, nem profissão nós temos”.
A crônica social escrita pelo rap foi um grito de uma juventude que estava sendo massacrada, e como muito bem disse Brown, apenas se falou o óbvio diante da cegueira, da auto alienação da classe média, e a elite que tentava jogar para debaixo do tapete aquilo que estava na cara. Pensando na atualidade podemos resgatar mais um vez os Racionais que afirmam de forma contundente na letra “Racistas Otários”: Nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos/ O preconceito e o desprezo ainda são iguais/Nós somos negros também temos nossos ideais”.
Continuamos nessa jornada. O corpo negro ainda é visto como descartável, como matável, encarcerável, açoitável, violentável. A cegueira também é um elemento muito conveniente para a manutenção dos privilégios e desigualdades no Brasil. Romper essa naturalização é o grande desafio e isso só será possível construindo um projeto de nação que rompa o cordão umbilical com o escravismo. A Casa Grande ainda é um símbolo vivo em nossa sociedade. Enquanto o privilégio for visto como natural não conseguiremos vencer a cegueira persistente e conveniente apontada pelo Mano Brown. Por isso, o movimento negro é o movimento social mais pedagógico desse país, pois ele mantém acessa a memória escravista, mas também trás a memória da resistência e não abre mão de cobrar a dívida histórica com o povo negro, como também não abrirá mão de construir um projeto libertário de nação.
Como diria o poeta José Carlos Limeira, “Por menos que conte a história/ Não te esqueço meu povo/ Se Palmares Não vive mais/ Faremos Palmares de novo”.
*Joselicio Junior, mais conhecido como Juninho, é Jornalista, Presidente Estadual do PSOL – SP e militante do Círculo Palmarino, entidade do movimento negro

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Na cidade do “Prefeito Faz Tudo” o Governo faz pouco

Passado um pouco mais de 120 dias do início de uma nova gestão a frente da Prefeitura de Embu das Artes já é possível fazer algumas avaliações do governo, obviamente levando em consideração  que são 4 meses e não 4 anos.  



O primeiro aspecto que gostaria de destacar é o marketing político, a impressão que fica é que a campanha eleitoral não acabou, criando uma sensação de muita propaganda e pouca ação, além de um excessivo personalismo, ou seja, não existe um governo na cidade e sim um super prefeito que faz tudo, que está em todos os lugares, para vender uma ideia de sujeito que faz.

Porém, essa ideia de um “prefeito faz tudo” tem um limite se  o governo não apresentar mudanças reais para cidade. Fazer vários vídeos nas redes sociais, peças de propaganda é relativamente fácil. Se o governo está realmente preocupado com as demandas populares por que não convoca plenárias regionais do orçamento participativo para apresentar os problemas da cidade e construir com o povo as soluções?

Neste sentido, o discurso mais forte dos primeiro dias de governo é que a cidade estava quebrada, com uma dívida de mais de 260 milhões, mas ao mesmo tempo anunciou 58 ações, em alusão aos 58 anos da cidade, e entre as proposta está a construção de um novo prédio da Prefeitura que vai custar mais de 4 milhões. 

É verdade que o atual prédio da sede da Prefeitura tem vários problemas, mais seria muito mais razoável a sua reforma. Sem contar que o local que está sendo proposto o novo prédio é uma área de proteção ambiental, conquistada na época da construção do eixo sul do Rodoanel, tendo em vista o impacto da obra.  Sem contar que no entorno não existe infraestrutura de bancos, restaurantes etc., portanto é uma proposta que não faz sentido e tem pouca viabilidade.

Logo nos primeiros dias de gestão, ainda com o prefeito interino, o governo aumentou a tarifa do Transporte Municipal de R$ 3,20 para 3,80, um aumento de 18,8%, muito acima da inflação, mesmo com protesto na porta de prefeitura, não houve recuo e a justificativa foi a modernização dos ônibus e aumento de linhas, mas a população sentiu o aumento pesado da passagem, mais infelizmente o transporte mudou muito pouco.

A recente entrega dos Kits escolares, que não é uma novidade nos últimos anos, portanto torno-se obrigação do governo, continua servindo como palanque, os familiares são obrigados a ficar ouvindo, passivamente, as autoridades para enfim ter acesso aos materiais. O “Prefeito no seu bairro” não é um programa para o governante ir ouvir a população é apenas para o prefeito fazer pose pintando o asfalto reforçando a ideia do “Prefeito Faz Tudo”, uma grande maquiagem que passando o tempo se não tiver solução real gera uma grande insatisfação popular, algo que a propaganda não conseguirá esconder.

A saúde, sem dúvida, é o maior desafio. Até o momento a impressão que se passa é que governo está enxugando gelo, tentando resolver no varejo algo que é estrutural, o maior exemplo disso foi o vídeo que circulou na internet do Prefeito Ney Santos  batendo boca com uma funcionária  da recepção do Pronto Socorro Central, sem dúvida nada justifica uma funcionária pública tratar mal a população que foi atrás de um atendimento médico, porém também é importante levar em consideração as péssimas condições de trabalhado que estão submetidos os funcionários, jogar a responsabilidade do caos da saúde no colo de uma funcionária  é muito cômodo para o prefeito.  Enquanto isso proposta como a reabertura do Pronto Socorro do Vazame, feita na campanha, nem é cogitada.

Enquanto morador, que ama Embu das Artes, não trabalho com a ideia de quanto pior melhor, queremos a melhoria real da qualidade de vida de nossa população, para isso é fundamental apresentar as críticas sobre os problemas reais que enfrentamos em nossa cidade, de forma respeitosa e sem ataques pessoais.  Hoje a percepção que tenho é que estamos diante de uma gestão local que aposta todas as suas fichas em auto construir a imagem do Prefeito, ou seja, “Prefeito Faz Tudo” mais que ainda não apresentou um projeto de cidade, não se apresentou até agora quais sãos planos para o futuro de Embu das Artes, e onde o prefeito faz tudo, é super herói o governo como todo faz muito pouco. Vejamos os próximos passos.  


Juninho é Jornalista, Presidente Estadual do PSOL e morador de Embu das Artes. – acompanhe Juninho nas redes sociais www.facebook.com/juninho


publicado originalmente no Jornal Folha de Embu - http://online.anyflip.com/kjhp/kkvu/mobile/index.html

TV Cultura censura grupo Aláfia

Banda denuncia ter tido música cortada em trechos com críticas aos tucanos João Doria e Geraldo Alckmin

No último dia 11 de abril foi ao ar mais uma edição do Programa Cultura Livre, da TV Cultura, com a participação da Banda Aláfia e, contrariando o próprio nome do programa, a última música apresentada pelo grupo sofreu uma censura brutal. O trecho da música “Liga nas de Cem” que faz uma crítica aos tucanos, governador Geraldo Alckmin e ao prefeito de São Paulo João Dória, foi cortada. A edição é muito sutil e talvez passasse despercebida se não fosse a indignação da própria banda que se sentiu violentada.
Na música “Liga nas de Cem” o grupo faz uma contundente crítica à segregação racial que existe na cidade de São Paulo, uma cidade negra, mas que tenta esconder essa população, que exalta os bairros nobres, que legitima uma elite opressora e no final cita Alckmin e Dória como representantes dessa elite. E foi justamente esse o trecho cortado pela edição final, antes de colocar o programa no ar, na madrugada de quarta-feira.
“Liga nas de cem que trinca
Nas pedra que brilha
Na noite que finca as garra
SP é fio de navalha
O pior do ruim
Dória, Alckmin
Não encosta em mim playboy
Eu sei que tu quer o meu fim”
(Musica de Jairo Pereira e Eduardo Brechó, para o disco “Sp não é Sopa, na beirada esquenta”, banda Aláfia)
Um dos vocalistas da banda Aláfia, Jairo Pereira, deu um contundente e importante depoimento para essa coluna. “A violência se mostra nos vetos e cortes, já vimos isso num passado recente, qual será o próximo episódio? Silenciar nossa voz, que clama por justiça, num veículo que devia dar voz a povo, por ser um veículo público de comunicação, só nos mostra o tamanho da cerca que estão construindo. Somos contra a violência do Estado, somos contra a higienização sistêmica que zela pelos direitos do opressor pintando de cinza a existência do oprimido. Nossa liberdade de expressão não elegeu alvos, muito pelo contrário, ela denuncia a massa de mira voltada cotidianamente contra nossas testas. Ao editarem nossa música, provaram por A + B que a carapuça está de acordo com o tamanho. Não houve consulta nem aviso prévio. O que fizeram foi uma violência contra nossa arte e isso deve ser denunciado, para que coletivamente possamos compreender que estamos diante de uma política inspirada no AI-5, um atentado desumano contra nosso direito de manifestar nossa insatisfação e repúdio ao que nos fere.”
O depoimento de Jairo não deixa dúvida do quanto é preocupante e absurda a ação praticada por uma TV pública. Atitudes como essa nos remetem aos tempos sombrios da ditadura civil-militar, nos remete à intolerância, ao fim da liberdade de expressão, nos remete à violência, que não é apenas física, mas também simbólica e cultural. Casos como esse servem para dar visibilidade para tantos outros casos de manipulação da mídia que muitas vezes passam batido, porém, fazem toda a diferença na formação da opinião pública.
A TV Cultura é uma rede de televisão pública, fundada em 1960, mantida pela Fundação Padre Anchieta, que se mantém basicamente com recursos do governo estadual de São Paulo. Apesar de ser uma TV pública, ou seja, que deveria atender os interesses públicos da sociedade paulista, com autonomia e independência de governos, na prática a TV Cultura funciona na lógica estatal, portanto serve aos interesses do governo do Estado e fundamentalmente aos interesses do governador e seus apadrinhados políticos, por isso não tolera qualquer crítica a esse grupo político.
Esse é um debate que a sociedade precisa fazer. Mesmo as emissoras privadas também são concessões públicas e deveriam ter um compromisso público com a sociedade muito maior e não atender apenas os seus próprios interesses e de seus patrocinadores. Mesmo com o advento da internet, que possibilitou que mais opiniões pudessem ser ouvidas e compartilhadas, sobretudo as vozes historicamente excluídas ou estereotipadas, a TV aberta continua sendo um grande veículo de comunicação.

O banda Aláfia, cujo nome tem origem no iorubá e significa “caminhos abertos”, está na estrada desde 2011 e lança o seu terceiro disco “SP Não É Sopa”, que traz na sua essência a mistura musical das tradições africanas, com o funk e o eletrônico e letras fortes, ásperas, politizadas, que tratam do racismo, das desigualdades e também traz a força da ancestralidade a partir da megalópole que é São Paulo. Aláfia nasceu, se fortaleceu, e hoje é uma importante expressão da cultura periférica paulista. A censura sofrida por eles deve nos indignar, prestar​ solidariedade, mas sobretudo devemos cobrar uma resposta das autoridades do Estado de São Paulo, não podemos deixar passar em branco.

Não se combate fascismo com machismo e racismo

Não é possível combater as ideologias fascistas reforçando o machismo e o racismo. Gasta-se mais tempo discutindo forma do que conteúdo. O binarismo só reforça estereótipos. Não é uma questão de solidariedade, mas de que sociedade e valores queremos construir.


Nos últimos dias ocorreram duas polêmicas que me chamaram a atenção. A mais recente foi a entrega do Troféu Imprensa no SBT, no último domingo (9),  quando Silvio Santos, ao entregar prêmio para Raquel Sheherazade (foto), afirmou que contratou a jornalista por conta da sua beleza e não para dar opinião: “Eu te chamei para você continuar com a sua beleza, com a sua voz, foi para ler as notícias e não dar a sua opinião. Se quiser falar sobre política, compre uma estação de TV e faça por sua própria conta”.
A outra polêmica que já está rolando há alguns dias é sobre o bate-boca durante a entrevista do Vereador paulistano Fernando Holiday (DEM/MBL) para o Jornalista da Rádio Bandeirantes Fabio Pannunzio para tentar explicar o caixa 2 em sua campanha. Eu afirmei no meu último artigo, “A vida é dura Holiday”, que a atitude do jornalista foi racista e isso gerou um grande debate nas redes sociais.
A postura de Silvio Santos reforçou o discurso da “bela, recatada e do Lar” ao afirmar que a jornalista deveria se preocupar com o seu novo casamento, em ter mais filhos e não se posicionar politicamente, tudo para preservar os seus interesses econômicos. O patrão só faltou dizer que o lugar de mulher é na cozinha, cuidando dos filhos e do marido. Fabio Pannunzio, em seu blog, logo após o bate-boca no rádio, disse que “Fernando Holiday foi eleito com a promessa de mudar as velhas práticas políticas que transformaram o país nisso que ele virou. Não tinha o direito, nem por um deslize, de se valer de práticas que ele e o MBL deploravam. Ele era o garoto da mudança. O novo vestido de novo. Gay, preto e honesto. Uma boa aposta para o futuro”, ou seja, o seu discurso perfeito de negro, gay, honesto, acrescento de direita, não fazia mais sentido, portanto, a sua traição merecia a dura que ele levou, ele precisava ser colocado no devido lugar.
O que esses dois casos têm em comum? Primeiro são as características dos personagens. Tanto Sheherazade como Holiday são bastante conhecidos por seus discursos raivosos, carregados de estereótipos, preconceitos, com tons xenofóbicos, lbgtfóbicos, machistas, racistas, ou seja, um conjunto de narrativas que constroem um discurso fascista e intolerante.  Ambos, nos casos descritos acima, foram vítimas do próprio discurso que são reféns.
O segundo ponto em comum foi o sentimento de revanchismo gerado em longos debates nas redes sociais, principalmente do campo progressista e de esquerda.  Houve muitas afirmações de “bem feito”, “merecido”, até foi machismo, até foi racismo, mas não me solidarizo com fascista, diziam, sem contar as chacotas e piadas que reforçam o machismo, o racismo e a lgbtfobia.
Esse debate todo abre uma janela enorme de discussão, principalmente da linha tênue do que chama hoje movimentos identitários e o preconceito de classes. De um lado independente das posições políticas, da origem social e do papel que exerce, somos todas mulheres, negras (os), LGBTs. Do outro lado, temos que ter solidariedade de classe. Se são fascistas, merecem ser atacados da forma que for.
Avalio ser necessário um equilíbrio. Se, de um lado, é fundamental compreender os fatores econômicos que produzem o acúmulo de riqueza de poucos e a exploração do trabalho de muitos – fato que na história do Brasil traz a herança do escravismo e do patriarcado e torna o racismo e machismo estruturais – é importante compreender que essa luta de classe também se materializa no campo simbólico e cultural. Construir narrativas que determinem o lugar que cada um pode ocupar na sociedade é uma das facetas para o desenvolvimento da hegemonia do capital na sociedade.
Deste ponto de vista, a disputa ideológica do modelo de sociedade traz à tona a tarefa e a necessidade do campo contra-hegemônico de incorporar as narrativas historicamente oprimidas. Não será possível romper com a lógica do capital sem romper com as suas amarras ideológicas. Não é possível combater as ideologias fascistas reforçando o machismo e o racismo. Gasta-se mais tempo discutindo forma do que conteúdo. O binarismo só reforça estereótipos. Não é uma questão de solidariedade, mas de que sociedade e valores queremos construir. Precisamos nos contrapor desconstruindo os argumentos liberais e fascistas, que ganham cada vez mais relevo na sociedade, apresentando outras alternativas e modelos societários.

Os casos envolvendo Sheherazade e Holiday demostram o tamanho da fragilidade de seus discursos, eles são aceitos e bem quistos até onde interessa, depois podem ser descartados. Avalio que é essa narrativa que devemos disputar.

Publicado Originalmente: http://www.revistaforum.com.br/2017/04/12/nao-se-combate-fascismo-com-machismo-e-racismo/

A vida é dura Holiday

O vereador que foi eleito pelo DEM, representando o MBL, na cidade de São Paulo se projetou com um discurso eloquente e contundente contra o movimento negro e as pautas LGBTs, visto por ele como movimentos vitimistas. Com uma defesa contundente de ética na política e um legítimo representante das pautas liberais.
Porém, nos primeiros meses de mandato, Fernando Holiday já sentiu que não será nada fácil trazer para o mundo real sua verborragia virtual. O primeiro desafio do vereador foi explicar para a classe média que o elegeu, com um discurso de ética na política, e para a grande mídia, a prática de caixa 2 em sua campanha. O auge dessa polêmica foi o bate-boca ao vivo na Rádio Bandeirantes com Fabio Pannunzio, onde o jornalista teve uma atitude nitidamente racista. O próprio vereador reconheceu que estava sofrendo aquela perseguição por ser negro e gay. Holiday é vítima, e ao mesmo tempo refém, da pauta que ele diz combater.
O novo capítulo de polêmica patrocinada pelo parlamentar e sua trupe foi a aventura de sair em diligência para fiscalizar escolas municipais. O nobre fez questão de destacar, em vídeos publicados em sua rede, que essas visitas tinham como principal objetivo verificar se nessas unidades havia doutrinação ideológica, provocando inúmeras reações de indignação de amplos setores da sociedade e de diversas matrizes ideológicas, inclusive.
As críticas mais contundentes partiram das(os) parlamentares do PSOL, que reagiram na Câmara Municipal, na Assembleia Legislativa e na Câmara Federal. Até mesmo o secretário municipal de Educação Alexandre Schneider fez duras críticas, e agora está sendo absurdamente acusado de aliado do PSOL pelo MBL. O presidente do Sindicato dos Professores Municipais, que é vereador pelo PPS da base de apoio do governo, também não poupou críticas; até João Doria disse que Holiday errou.
Mesmo mantendo firme a sua jornada na luta a favor da Escola Sem Partido e no alto da sua arrogância, Fernando sentiu que a vida é dura, não é tão simples fazer uma transição mecânica do mundo virtual para o mundo real. Falar o que bem entende na internet é fácil, mas a realidade é muito mais complexa e mesmo na divergência existe o limite do respeito e da sensatez.
Qual é régua que mede o que é ou não ideologia? Todas as nossas ações são carregadas de sentidos, valores, trajetórias, perspectivas, tudo isso forma uma ideologia. Concordo muito com a posição da professora Solange Amorim que afirmou que “cada pessoa traz em si outros milhões de pensadores. Ser ideológico é inerente à condição humana”, ou seja, não existe neutralidade. A ação do vereador também é ideológica e representa os valores conservadores, de manutenção da ordem social que não deseja o pensamento crítico ou qualquer questionamento à estrutura social estabelecida, que é totalmente desigual, racista, machista, lgbtfóbica.
A postura do vereador é tão ideológica e doutrinária que passa por cima das funções constitucionais de um vereador. Confunde o papel de fiscalizador com o papel de inquisidor, com o papel de polícia.  Coloca as suas convicções acima da liberdade de cátedra dos educadores, se considera acima da LDB (Lei de Diretrizes de Base dá Educação), pensa estar acima do planejamento pedagógico feito nas escolas, acima inclusive das produções acadêmicas e estudos pedagógicos de diversas matrizes. Qual o conteúdo que deve ser ensinado sob a sua visão? Que o Brasil foi descoberto e não invadido pelos portugueses, por exemplo?
Engraçado que não mostrou a mesma preocupação com as estruturas das escolas, com a merenda, com os uniformes, com os salários dos profissionais que não têm aumento há anos e tantos outros problemas que as escolas enfrentam. A reação negativa dos professores e de diversos setores da sociedade foi essencial e suscitou um importante debate sobre que modelo de educação nós defendemos.
É importante ressaltar que o governo ilegítimo de Temer aprovou uma reforma no ensino médio que empurra a educação para o campo tecnocrata para preparar mão de obra “qualificada” para o mercado. Assim, esvazia a proposta da escola como espaço de produção de conhecimento crítico, de formação cidadã, de liberdade e emancipação humana. Esse é o peso ideológico de um processo que já se arrasta, há anos, com o sucateamento da educação. Neste sentido, Holiday é apenas uma pequena engrenagem nesse processo mais amplo que vem encontrando eco com a ascensão de grupos de extrema direita. A reação da sociedade contrária a essa posição é fundamental, fazer essa disputa de narrativa é uma tarefa urgente.
O ataque ideológico às escolas não é à toa. A juventude secundarista mostrou a sua força na luta contra a reorganização das escolas e na denúncia da máfia da merenda. Os secundaristas protagonizaram a primeira queda de popularidade do governo Alckmin em São Paulo. As ações destrambelhadas do Holiday nos ajudam a qualificar o debate e mostram que, para além das redes, a vida também não é tão fácil para essa nova direita, com traços fascistas.

Publicado Originalmente na Revista Fórum: http://www.revistaforum.com.br/2017/04/07/a-vida-e-dura-holiday-2/

A meritocracia e o fantástico mundo do Holiday

A ideia de uma sociedade livre, onde cada indivíduo a partir do seu próprio esforço deve construir a sua trajetória, é bastante sedutora. Afinal, somos todos humanos e capazes, portanto, podemos chegar onde quisermos e senão atingir os objetivos estabelecidos, a culpa é única e exclusivamente sua. O Estado, estruturado por 3 poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, deve ter leis rígidas e claras: todos cidadãos devem ser tratados igualmente perante a lei.
Esses são alguns parâmetros do conceito do Liberalismo, que forma o discurso eloquente do mais novo vereador eleito pela cidade de São Paulo, Fernando Holiday, que já anunciou em suas redes sociais que suas primeiras medidas serão o combate ao vitimismo, fim das cotas raciais em concursos públicos e a revogação do dia da Consciência Negra.
Holiday, jovem, negro e gay, ganhou muita visibilidade nas redes sociais por atacar o movimento negro e as políticas de promoção da igualdade racial, pois acredita que estas reforçam o racismo. O vereador também se projetou como uma liderança do Movimento Brasil Livre (MBL).
Se o racismo não é algo importante na realidade brasileira, se as negras e os negros estão em pé em igualdade com os não negros e a partir do seu esforço individual, sem a presença do paternalismo do Estado, podem ascender-se socialmente, porque o próprio Holiday insiste tanto em debater esse tema?
Seria porque o seu amigo Kim Kataguiri (MBL) é visto como um jovem intelectual, figura da nova geração de liberais e assim, o vereador só consegue se projetar com um discurso raivoso contra o movimento negro e as políticas de combate ao racismo?
Holiday é vítima, e ao mesmo refém, da pauta que ele diz combater. Sua ascensão como liderança está condicionada a pauta racial, sua estética lhe dá legitimidade para fazer um discurso que um branco de classe média jamais poderia fazer. É um exemplo perfeito para a busca de uma narrativa eficiente na desconstrução da luta histórica do povo negro.
É interessante notar como ao longo da história, a elite brasileira sempre buscou formas de apagar, ou minimizar, os impactos do que foi o colonialismo, o escravismo até hoje. O discurso da democracia racial é o maior exemplo disso, pois sempre buscou, a partir da incorporação de elementos da cultura negra e indígenas como parte de uma identidade nacional, esvaziando os conflitos e as assimetrias étnicas construídas ao longo da história, refletindo em uma profunda desigualdade econômica, social e cultural.
O movimento negro brasileiro se dedicou longos anos para desconstruir a idéia de uma democracia racial. Existindo duas frentes para essa desconstrução, sendo uma com a iniciativa de forçar o Estado a reconhecer a existência do racismo como fruto de um processo histórico escravista e portanto, era necessário a aplicação de políticas reparatórias de promoção da igualdade racial. Deriva dessa luta a formação da Fundação Palmares, o racismo como crime inafiançável, a proposta de cotas nas universidades e no serviço público, na formação de diversos órgão municipais, estaduais e nacionais na promoção da igualdade racial.
A segunda frente foi no campo cultural, com o fortalecimento de uma identidade negra e da afirmação estética que foi produzindo um aumento significativo de autodeclarados pretos e pardos nos sucessivos censos. O momento de avanço desse projeto se deu nos governos Lula/Dilma com a criação da Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), com a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e da política de cotas nas Universidades Públicas Federais, como o ProUni e FIES que garantiram o acesso nas universidades particulares. Além de cotas no funcionalismo público, e políticas econômicas como o bolsa família, a valorização do salário mínimo, o aumento da oferta de crédito. Medidas que mexeram na dinâmica social brasileira, abrindo oportunidades para diversos setores historicamente excluídos, mas que mostraram os seus limites, pois não foram capazes de enfrentar as bases estruturais da desigualdade, como a concentração de riqueza, latifúndio e o monopólio midiático.
No auge da aplicação dessas políticas econômicas e sociais, que geraram certa mobilidade social no núcleo de poder encabeçada por Lula e pelo PT, abriram mão do debate ideológico e da disputa de consciência, da exaltação das saídas individuais, e da construção fantasiosa de uma narrativa da formação da nova classe média reforçou no imaginário popular conceitos liberais, com a possibilidade de ascensão social e melhorias da qualidade de vida se dando por meio de ações individualizadas.
É neste contexto que cai como uma luva o discurso do Fernando Holiday, reforçando a ideia de que os programas sociais, as políticas de cotas e sistema público de saúde e educação formam um paternalismo de Estado que impede o desenvolvimento individual das pessoas. A maior força do discurso do vereador é também a sua maior fragilidade. É muito cômodo dizer que todos são iguais perante a lei, e que só através do esforço individual as pessoas poderão melhorar sua condição de vida. Além de afirmar que qualquer política que busque diminuir as desigualdades é vitimismo.
É curioso que a política de juros altíssimos que geram super lucros para os bancos e uma dívida pública que consome 46% do orçamento federal não seja considerado vitimismo. Ou que o incentivo fiscal que anistia empresas a pagarem impostos não seja considerado vitimismo. Ou que a inexistência de impostos que taxem lucros dos empresários, heranças e patrimônio não seja considerado vitimismo. Ou seja, tudo o que beneficia o andar de cima, que transforma o Brasil em um dos países mais desiguais do mundo não é considerado vitimismo. Trocando em miúdos, para Holiday, o Estado só deve atuar para manter os privilégios das elites que se mantêm no poder há mais de 500 anos e reprimir com leis duras os mais pobres.
Será que no fantástico mundo de Holiday, ele também acredita ser vitimismo quando no ano passado, cerca de 160 pessoas foram assassinadas por dia no Brasil? Somando no total, 58.383 pessoas mortas violentamente e intencionalmente no país? Sendo 70% dessas mortes são praticadas contra jovens, negros e pobres?
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Outro ponto importante do seu discurso é a ideia de meritocracia que se embasa na afirmativa de que todos são iguais e têm condições de disputar qualquer espaço na sociedade.
No debate das cotas, é possível exemplificar a fragilidade do discurso liberal. Como por exemplo, o vestibular ou um concurso, nada mais é do um conjunto de regras e equações, e aqueles que estiverem melhor treinados para aqueles padrões são os que tem o melhor desempenho. Avaliações como estas, não medem conhecimento ou capacidade de aprendizagem, apenas reflete os que estão mais preparados com esse padrão de prova.
Para quem acredita na meritocracia, o fato de todos os concorrentes lutarem por uma vaga e realizarem a mesma prova, com o mesmo tempo disponível, ou seja, com regras bem estabelecidas, já garante uma igualdade de condições, sendo aqueles que obtiverem o melhor resultado são os “merecedores”.
Porém, analisarmos esse mesmo processo seletivo levando em consideração o contexto histórico e as distintas trajetórias, veremos que os vestibulares e os concursos são grandes funis sociais.
Como por exemplo, uma jovem de classe média, que estuda em uma escola particular pela manhã, faz cursinho a tarde com preparatório para o vestibular e acompanhamento psicológico. E em contrapartida, outra jovem, moradora da periferia, que estuda à noite, pois durante o dia precisa trabalhar para ajudar na renda doméstica, e com muito esforço faz um cursinho popular aos sábados, não terão as mesmas condições para realizar a prova.
A política de cotas nada mais é do que uma ação que busca diminuir o abismo entre essas duas trajetórias e garantir oportunidades para aqueles que historicamente foram excluídos, neste sentido, Holiday utiliza sua trajetória como exemplo de como é possível ascender pelo próprio mérito e estabelece isso como regra e não exceção.
Por fim, no fantástico mundo de Holiday não devemos ter memória de resistência, o caminho que deve ser exaltado é dos bandeirantes, dos senhores de engenho, de heróis nacionais como Dom Pedro II, Tiradentes, José Bonifácio e os Constitucionalistas.
O resumo da ópera então é que não podemos ser vitimistas. Não devemos cobrar políticas de reparação histórica do Estado Brasileiro, muito menos exaltar a nossa memória daqueles que se rebelaram contra o sistema colonial escravista.  Para Holiday o nosso papel histórico deve se resumir emtrabalhar, trabalhar e trabalhar. Caso o indivíduo não consiga nadana vida é porque não se esforçou o suficiente, e o restante fica tudo como está. Só que não!
Joselicio Junior, mais conhecido como Juninho, é jornalista, militante do movimento negro e presidente estadual do PSOL-SP.